Profissionais ganham menos por hora, vivem sob insegurança e seguem fora da proteção social
O número de brasileiros que vivem de trabalhos intermediados por aplicativos não para de crescer. Segundo dados recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 1,7 milhão de pessoas atuam hoje como motoristas, entregadores ou prestadores de serviços por meio de plataformas digitais. O dado confirma uma tendência que já vinha se desenhando há alguns anos: o avanço acelerado da chamada “uberização” do trabalho.
Mas, por trás da promessa de autonomia e flexibilidade, a realidade mostra um retrato de baixa remuneração, longas jornadas e ausência de direitos básicos. A maioria desses profissionais não possui vínculo formal, não tem acesso a benefícios trabalhistas e, em muitos casos, nem mesmo contribui para a Previdência Social.
Um trabalho em expansão e em desequilíbrio
O crescimento do setor é um reflexo direto das transformações no mercado de trabalho brasileiro. Com o desemprego estrutural e o avanço da economia digital, os aplicativos se tornaram a porta de entrada (e, para muitos, a única saída) para gerar renda.
Hoje, o país tem mais trabalhadores por conta própria em aplicativos do que empregados na indústria automobilística. O problema é que o ganho médio por hora tem caído, à medida que mais pessoas entram no setor e as plataformas reajustam seus algoritmos e tarifas.
De acordo com o IBGE, os rendimentos médios por hora desses profissionais são menores do que os dos trabalhadores com carteira assinada. Enquanto motoristas e entregadores enfrentam o custo crescente do combustível e da manutenção, as empresas de tecnologia repassam cada vez menos aos parceiros.
“O discurso da liberdade não se sustenta quando o trabalhador precisa rodar 12 horas por dia para pagar as contas”, afirma o economista Rogério Machado, pesquisador de mercado de trabalho digital. “Na prática, é uma relação de dependência mascarada pela ideia de empreendedorismo.”
A promessa da flexibilidade e o peso da instabilidade
Os aplicativos transformaram a forma como se trabalha, mas também criaram um modelo de precarização com aparência moderna. O motorista escolhe o horário, mas não controla a tarifa. O entregador define a rota, mas depende do algoritmo. O profissional é “seu próprio patrão”, mas pode ser bloqueado a qualquer momento sem justificativa.
Pesquisas apontam que quase 60% desses trabalhadores não têm nenhuma outra fonte de renda, o que os torna especialmente vulneráveis às oscilações da demanda. Além disso, apenas 36% contribuem para o INSS, o que significa que a maioria ficará sem aposentadoria, licença médica ou proteção em caso de acidente.
Entre o lucro das plataformas e o vazio de direitos
As empresas, por sua vez, defendem que oferecem oportunidades de geração de renda e que o modelo de parceria deve ser preservado. Elas argumentam que a rigidez das leis trabalhistas não se adequa à lógica digital.
Mas especialistas em direito do trabalho apontam que essa “modernidade” tem um custo social alto. “Há uma nova forma de exploração disfarçada de tecnologia”, diz a jurista Patrícia Borges, professora da UERJ. “O Estado não pode permitir que a inovação se transforme em justificativa para suprimir direitos conquistados ao longo de décadas.”
Em vários países, governos vêm tentando criar regras específicas para proteger esses trabalhadores. Espanha, França e Reino Unido já exigem contribuições sociais e garantias mínimas de descanso e remuneração. No Brasil, o tema segue em debate no Congresso, mas ainda sem consenso.
O desafio da proteção social
Enquanto isso, o cotidiano segue duro nas ruas. José Ricardo, de 42 anos, é motorista por aplicativo há cinco. Ele diz que o que começou como uma alternativa temporária virou um trabalho sem perspectiva de saída. “Hoje eu rodo de manhã até a noite. Se eu ficar um dia parado, já não pago as contas. E cada mês parece que ganho menos.”
A fala de José resume o dilema de uma categoria que cresce sem segurança. O avanço das plataformas evidencia a urgência de uma nova política pública de proteção social, que reconheça a importância desses trabalhadores sem deixá-los à margem da lei.
Entre o futuro e a precarização
O crescimento de 1,7 milhão de trabalhadores por aplicativos é, ao mesmo tempo, um sinal de inovação e de fragilidade. Representa uma nova economia, mas também um modelo em que o risco e o custo recaem quase inteiramente sobre o indivíduo.
Enquanto as empresas celebram a eficiência tecnológica, motoristas e entregadores seguem enfrentando longas jornadas, insegurança e ausência de direitos. O Brasil digitalizou o trabalho mas ainda não aprendeu a humanizar a tecnologia.









