Por Redação Especial
A decisão dos Estados Unidos de aplicar a Lei Global Magnitsky contra o ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes, trouxe à tona um debate que ultrapassa fronteiras jurídicas e diplomáticas. A medida, criada originalmente para punir ditadores, oligarcas e traficantes internacionais, agora atinge um magistrado de um dos países mais populosos e democráticos da América Latina.
A sanção norte-americana, que congela eventuais ativos e impede a entrada no país, baseia-se em acusações de que Moraes teria violado liberdades fundamentais ao autorizar bloqueios de perfis em redes sociais, censura de conteúdos e prisões questionadas por setores da sociedade civil. Para Washington, tais ações configuram violações de direitos humanos. Já em Brasília, a leitura é outra: o ministro estaria cumprindo sua função de proteger instituições contra ataques digitais e políticos.
Essa divergência de interpretação expõe um dilema central da democracia contemporânea: até que ponto o uso da lei para conter abusos não se transforma, ele próprio, em abuso de poder?
A lei que nasceu de um mártir russo
A Lei Magnitsky leva o nome do advogado russo Sergei Magnitsky, morto em 2009 após denunciar corrupção em altos escalões do Kremlin. Criada inicialmente para punir agentes russos envolvidos em sua morte, a legislação foi expandida em 2016 para o mundo todo, permitindo que os EUA sancionem qualquer autoridade estrangeira acusada de corrupção ou violação de direitos humanos.
Na prática, é uma arma de “soft power” que atinge o bolso e a reputação de autoridades acusadas de ultrapassar limites éticos ou democráticos.
Moraes no alvo
Que um juiz supremo entre nesse rol não é trivial. Tradicionalmente, a lei foi usada contra líderes de regimes autoritários, generais golpistas ou empresários ligados a máfias globais. Ao atingir Moraes, os EUA enviam uma mensagem dura: decisões judiciais também podem ser interpretadas como formas de repressão política.
Essa interpretação gera enorme polêmica. De um lado, críticos veem o ministro como símbolo de um Judiciário hipertrofiado, que teria avançado sobre a liberdade de expressão. De outro, apoiadores o defendem como barreira institucional contra ataques golpistas e contra a desinformação em massa.
Hannah Arendt e o espelho do totalitarismo
A discussão ganha densidade se observada à luz de As Origens do Totalitarismo, de Hannah Arendt. A filósofa alemã mostrou como regimes totalitários do século XX se consolidaram justamente pela manipulação da legalidade: leis e tribunais eram mantidos, mas transformados em instrumentos de controle absoluto.
Para Arendt, o totalitarismo não se define apenas pelo uso da força, mas pelo controle total do espaço público, pela eliminação da dissidência e pela criação de uma narrativa única. Nesse sentido, quando decisões judiciais começam a restringir liberdades em nome de uma ordem maior, o risco não é a instauração imediata de um regime totalitário, mas a erosão gradual de garantias fundamentais que abrem caminho para ele.
Entre autoritarismo e democracia
Não se pode afirmar que o Brasil viva um regime totalitário — há eleições, pluralidade de partidos, imprensa crítica e liberdade de organização. Mas a tensão entre segurança institucional e liberdade individual permanece no centro do debate.
A sanção contra Moraes funciona, portanto, como um espelho incômodo: obriga o país a refletir sobre os limites do poder do Judiciário e sobre como garantir que medidas excepcionais não se tornem rotina. Afinal, como lembrava Arendt, os maiores perigos para a liberdade não surgem apenas de ditaduras declaradas, mas também de democracias que cedem, pouco a pouco, ao hábito de restringir o dissenso em nome de uma ordem superior.
Conclusão
A Lei Magnitsky nasceu para punir corruptos e ditadores, mas hoje lança luz sobre um dilema mais profundo: quando a defesa da democracia passa a ameaçar a própria democracia?
No caso Alexandre de Moraes, não se trata apenas de uma disputa entre Washington e Brasília, mas de uma advertência histórica. O que está em jogo é o equilíbrio delicado entre a proteção das instituições e a preservação das liberdades — um equilíbrio que, como ensinou Hannah Arendt, define a fronteira entre democracia, autoritarismo e totalitarismo.









